domingo, 28 de outubro de 2007

CONTO PROGRAMADO

Um homem de terno cinzento entrou na tabacaria. Mostrava pressa e falou com agressividade ao mesmo tempo que empurrava violentamente o homem atrás do balcão. Com a outra mão retirava todo o dinheiro da gaveta. Escondida no meio das prateleiras, uma pequena câmera filmava o assaltante.
O rapaz caído estendia a mão e apanhava a arma embaixo do balcão.
Havia um gato magro que miava sem parar.
O assaltante ignorando a existência da arma, ainda contava o dinheiro. Não imaginava que podia haver reação daquele homem franzino caído no chão.
Ouviu-se um estampido.
Os seus olhos arregalaram-se. Não acreditava no que estava acontecendo. Passou a mão no peito.
Ouviu-se um segundo estampido. O terno já não era mais cinza. O gato parou de miar.
A casa estava cheia de amigos, vizinhos e parentes.
Ninguém entendia como um homem correto, bom chefe de família tinha cometido aquela loucura. Todos estavam perplexos. Nada justificava aquele ato.
Começou uma chuva miúda, mas logo vieram as trovoadas, o vento, os relâmpagos.
Era uma moldura adequada para o quadro de desolação geral.

CRÔNICA

NA CONTRAMÃO



Não sou pessimista. Procuro achar um aspecto positivo em cada acontecimento baseada no dito popular de que sempre pode ser pior do que está.
Estou tentando encontrar o lado melhor da notícia que me deixou pasma, o fechamento do Cine Capitólio. Não encontrei.
Inicialmente foram as fábricas. Poderia citar de imediato uma meia dúzia delas.
Com elas foram-se milhares de empregos. O dinheiro diminuiu. Os bolsos murcharam. Só restou a esperança. Afinal, vivemos em uma cidade com muitos funcionários públicos. Somos um pólo cultural e educacional. Universidades, CEFET.
Servidores públicos ganham bem. Ganhavam! O achatamento salarial é uma realidade incontestável.
Para se adequar à realidade, começa-se cortando o supérfluo.
A tecnologia facilitou o acesso aos filmes e popularizou o DVD. Pirata é lógico.
Como imaginar que empresas de outros ramos, o do entretenimento não seriam afetadas?
Com tudo caindo por terra, só resta rezar. Proliferam as igrejas.
Surgem mais supermercados. Alimenta-se o corpo para compensar a alma desprovida de poesia.
A violência aumenta. Os malfeitores reproduzem-se em quantidade na medida em que também aumentam de tamanho. Logo, é necessário resguardar os bens. Então, mais um estacionamento aparece.
A realidade choca. Para fugir dela só resta locar um filme e ver em casa.
Qual será o próximo abalo ?

Exercício de criação-

KIKA E EDMILSON


Kika sempre foi uma pessoa curiosa. Quem a vê não imagina a sua maneira de pensar, nem suas convicções das quais não se afasta por nada.
A aparência é avançada. Fora dos padrões normais. Nos conceitos de família, vida pessoal é mais regrada. Apesar de não ter religião respeita a crença dos pais e não deseja criar maiores conflitos além das desavenças habituais pela sua aparência física, para eles muito ousada. Decidiu, então, morar sozinha. Sua situação financeira é estável. A banda já lhe rendeu algum dinheiro que guardou para realizar o sonho de comprar um apartamento. Assim poderá receber os amigos sem problemas. Seu pai não os tolera. Não pela aparência um tanto exótica, mas pelo fato de , eventualmente, utilizarem maconha. Fazem isto em qualquer lugar. Kika é contrária a este hábito. Não faz uso disto. Nunca. Não conseguiu dissuadi-los de utilizarem.
Foi uma terça-feira que foi ao encontro do corretor com quem tratou por telefone ao ligar para uma imobiliária para se informar de um imóvel que vira em anúncio no jornal. Edmilson era seu nome. Combinaram encontrar-se na imobiliária e de lá seguirem juntos para ver o apartamento.
Lá chegando foi direto na recepcionista a quem informou que desejava encontrar o corretor Edmilson.
Ele, que vinha entrando na recepção, mal olhou no rosto de Kika. A aparência “gótica” da moça não o levou a imaginar que aquela era a cliente. A voz suave não condizia com a aparência.
A recepcionista informou que a moça desejava falar-lhe.
Edmilson, sem olhar para ela informou que não poderia atender ninguém, pois estava ocupado. Sem dar atenção à cliente entrou na sua sala.
Kika já estava acostumada a ser alvo de discriminação em virtude da aparência nada convencional. Pediu licença e foi entrando escritório à dentro sem bater. Soltou de um fôlego só uma enxurrada de palavras.
_ Olha aqui seu tratante. Não me desloquei de ônibus, sem café para cumprir o compromisso agendado e chegar aqui na hora marcada, para encontrar um corretor irresponsável, bobalhão que nem na minha cara olhou e que por certo deve achar que não tenho condição de comprar nenhum apartamento. Agora quem não quer sou eu. Vou procurar outro corretor. Deve haver profissional mais educado e competente.
Virou-se e saiu com o mesmo ímpeto que entrou na sala, sem dar tempo para que ele esboçasse qualquer reação.
Passaram-se dois dias.
Edmilson achou que deveria ligar para Kika e desfazer o mal entendido. Não tivera a intenção de agir de forma preconceituosa. Afinal, ele próprio não era nenhum “Gianechinni da Globo” e sabia o que era não se enquadrar no estereótipo de beleza. O mercado de trabalho se abre para jovens, belos, altos, sarados, bem falantes e que vendem uma bela imagem. Aos demais resta um corpo a corpo diário para comprovar competência, embora esta nada tenha a ver com aparência física.
Mesmo sem intenção pisou na bola, como se diz na linguagem de futebol.
A moça não parecia muito convencida, mas aceitou as desculpas e marcaram uma nova data para examinarem o apartamento. Desta vez se encontrariam na porta do edifício. Ele já estaria à sua espera.
Assim foi feito.
Fazia questão de olhá-la bem nos olhos ao lhe falar assim tentaria desfazer a primeira impressão.
Saudou-a com um sorriso estampado no rosto.
Ainda desconfiada, Kika respondeu ao cumprimento com um meio sorriso.
Subiram.
Ele falava o tempo todo sobre as vantagens da localização do apartamento, do tipo de construção, suas características, o tipo de morador dali, as conveniências do entorno.
Até parecia bem simpático, alegre, olho brilhante. Isto chamou sua atenção. Gostou daquele brilho no olhar. Prendia a atenção das pessoas. Era como um ímã. Não conseguimos nos desgrudar. É típico de quem tem luz interior e de quem faz o que gosta.
O brilho se expande pelo rosto e nos atinge. Atrai.
A mãos, que não paravam de gesticular mostrando a grande janela com uma linda vista para um pequeno parque, eram bem cuidadas, de unhas bem limpas e, apesar dele ter uns quilinhos a mais, eram longa e bonitas. Deviam ser macias também.
Quando percebeu, ao invés de olhar cada cômodo, olhava para cada parte do rapaz que lhe chamava a atenção: os olhos e as mãos.
Ela a tratava com gentileza e atenção, bem diferente da outra vez. Estava gostando. Tanto que ao saírem do apartamento , quando ele perguntou se poderiam se encontrar novamente para conversarem melhor ela logo assentiu. Desta vez com simpatia, um aperto de mão, que ele retribuiu com um longo sorriso, um olhar mais brilhante ainda e um longo e suave beijo no rosto.
Ela gostou.
Fechou os olhos. Será que estava apaixonada ?
Não podia acreditar.

Exercício de criação

O RESGATE


Beatriz ainda estava atordoada. Não sabia como fora parar naquele lugar. Tudo muito rápido. Aqueles tipos que estavam com ela eram muito estranhos e deixavam-na mais nervosa,entretanto não fosse o choro da garota que parecia desmanchar-se em lágrimas a ponto de irritar aquele homem que permanecera de guarda à porta, não teria sido possível escaparem. Fugiram com a mesma rapidez com que foram pegos na lotação. Parece que havia uma combinação entre elas: a garota a chorar, aquele cara maltrapilho que parecia nada ter a perder jogando-se sobre ele sem preocupar-se com a arma , o professor - sim devia ser um professor, fala correta, metódico, sisudo, mal humorado melhor dizendo-a desarmá-lo e dominá-lo de imediato. A senhora que ficava no canto da sala foi ajudada pela outra senhora alegre, com sotaque carioca e pela outra que disse ter nome de flor e que eu não lembro qual. Saímos o mais rápido possível daquele sítio onde estávamos confinados a dois dias , aproveitando o momento que os outros dois seqüestradores iam verificar o local para o resgate.
Logo que saí da sala fui direto no carro que vi estacionado à sombra de uma árvore, na lateral da casa e que eles nem tiveram o cuidado de manter escondido já que a casa ficava distante da estrada. Vi que a chave estava na ignição. Entrei, gritei para todos entrarem imediatamente enquanto o mendigo terminava de amarrar o seqüestrador e o professor ligava para a polícia.

Exercício de oficina

Beatriz acompanhou com os olhos a saída de Alexandre do mar. Foi bom acompanhá-lo à praia naquele dia. Saíra da rotina e aproveitara um pouco a companhia do filho. Estava com saudade. Não se encontravam há vários dias. Os estudos dele os impedia.
Após observar toda sua performance, Beatriz disse-lhe:
- Gostaria que entendesses que ao te cobrar rendimentos nas atividades e na vida o faço porque é necessário que o caminho de cada um seja feito com responsabilidade, disciplina e também com prazer, o que dá uma certa leveza, mesmo que haja muita exigência. Quero que tenhas no trato de tuas coisas a mesma disciplina, controle, observação que tens quando praticas um esporte.
-Compreendo teu posicionamento,mas -droga,não me impõe o teu ritmo. Deixa-me fazer o que desejo à minha maneira.
Beatriz explicou-lhe que sua preocupação era quanto à sua realização profissional. Não queria que interpretasse como preocupação financeira.